A paixão segundo G.H. - artigo científico

Este trabalho foi apresentado na Universidade Federal de Minas Gerais/faculdade de Letras, na disciplina Literatura Brasileira - Clarice Lispector.

Por Geraldo Genetto Pereira
Professor, escritor, blogueiro, youtuber.
Formação: Licenciatura e Mestre em Letras pela UFMG.
O romance
É um relato de uma aventura interior que por sê-la, não possui um momento exato para início. “ [...] estou procurando, estou procurando ....” Segundo Gotlib, a obra é a grafia do imaginário. o fim do livro contém o fim do ciclo da paixão temporária que pode dar outros capítulos. “Ao comer a massa branca da barata e atingir o estágio máximo desse caminho de paixão, ao preço de atravessar uma sensação de morte; aí não há palavras: apenas o branco ou vazio da pagina”. (Gotlib, 1993). – atingi-se a terceira margem da paixão, o indizível. 

Opostos na obra:
  • Relação do amor versus o ódio.
  • Uma mulher rica versus uma empregada pobre
  • Uma mulher versus sua própria identidade.
Espaço da narrativa
 G.H. vive sozinha em um apartamento de cobertura, independente, participando de um padrão “masculino” para a época: para uma mulher, essa reputação é socialmente muito (...) fica socialmente entre a mulher e o homem.

O tema
Segundo Nádia Gotlib[1], o conto “amor” talvez tenha inspirado o romance A paixão segundo G.H., pois naquele há experiência de mergulho da mulher na sua intimidade criativa. Em uma crônica escreveu Clarice: “eu antes tinha querido ser os outros para conhecer o que não era eu. Entendi então que eu já tinha sido os outros e isso era fácil. Minha experiência maior seria ser o outro dos outros: e o outro dos outros era eu”. (apud Gotlib, 1993:276). A busca por si mesma: “se eu tivesse que dar titulo à minha vida seria: á procura da própria coisa.” (Clarice Lispector, apud Gotlib, 1993: 277). Sobre o romance: “eu ... é curioso, porque eu estava na pior das situações, tanto sentimental como de família, tudo complicado, e escrevi A paixão ..., que não tem nada a ver com isso”. (Clarice Lispector – entrevista em 20/10/1976, lembrando-se das circunstancias em que escreveu o livro, no ano de 1963, - apud Gotlib, 1993:277). “eu nunca desabafei num livro. Aí servem os amigo! Eu quero a coisa em si” (idem) Admite a experiência pessoal: “É, fugiu do controle quando .... eu de repente percebi que a mulher G.H. ia ter que comer o interior da barata, eu estremeci. De susto”. (apud Gotlib, 1993:278).
Clarice comenta: “Benedito (NUNES) disse que A paixão segundo G.H. tinha náusea Sartirana, especialmente devido à cena da barata. Não é bem isso. É uma náusea que a gente sente diante de uma coisa viva demais”. (apud Gotlib, 1993:278).

Temática é o existencial: há a luta contra as palavras, através do fluxo de consciência. A bíblia funciona como um hipotexto – Retomar de textos anteriores - (um texto como pano de fundo do texto principal).

PSGH narra ao leitor o caminho árduo e conflituoso percorrido – caminho que compreende a saída de seu bem-estar , conforto e organização, para o ingresso no caótico desconhecido. “Sua individualidade - de GH - é aniquilada ao fazer a experiência extrema, viver sua paixão”. (JORDÃO, 2006:77).  “A obra e a vida de Clarice Lispector são estreitamente ligadas, conforme  Dany Kanaam que produziu a obra  A escrita de CL: do biográfico ao literário. 2003:19)[2], como: G.H. pede ao leitor que lhe dê a mão para que possa suportar o relato. Segundo BORELLI (1988:23), Clarice lhe pediu a mão na hora da morte, para suportar a travessia.

De acordo com Borelli, nas conversas de Clarice “sempre surgia [3]o questionamento do sentido da vida, Deus, morte, matéria, espírito.” Devido à familiaridade de Clarice com a bíblia, há na PSGH uma pratica transtextual, que a transposição da literatura bíblica, a recriação, transcriação, em que Clarice explora a Epifania como procedimento típico da escritura judaico-cristã. Há a forma discursiva de inflexão teológica, com o tom confessional de uma penitente.

O que é Epifania na literatura?
Para Affonso Romano, não é uma súbita revelação da verdade, como defini os dicionários. Significa um relato de uma experiência que a princípio se mostra simples e rotineira, mas acaba por mostrar a força de uma inusitada revelação. É a percepção da realidade atordoante quando aos objetos mais simples, os gestos mais banais. O extraordinário surge sucede do intimo. Epifania, em literatura, pode ser ainda não apenas o relato de experiências, mas pode ser uma obra ou parte de uma obra onde a consciência se abre para o mundo em momentos luminosos.

Segundo Afonso Romano é “dessa tensão é que surge a epifania, uma revelação de uma certa verdade”. (SANT'ANNA, 1977: 7)[4].  A “obra é a epifania da linguagem sobre o silêncio, a percepção do poético dentro do prosaico e da consciência ordenadora do indivíduo dentro do caos aparente que é o mundo”. (idem). 

O título do romance
Segundo Sant'anna, “(...) a melhor maneira de ler Clarice não é racionalmente. Os leitores leigos e matemáticos sempre deram mal com ela.” (SANT’ANNA, 1977:4). Por isso,  “não se admite no contexto dessa obra que se entenda o termo paixão enquanto amor ardente, conjugal. Clarice tinha consciência dessa confusão do titulo para os leitores incautos, por isso a obra foi direcionada a leitores de alma formada; capazes de percorrer essa via-crúcis profana para descobrir, sofrida e lentamente, através do oposto do que se vai atingir, esta alegria difícil que chama Paixão – como adverte logo no início.[...] o grego sempre viu na experiência de uma paixão algo de misterioso e assustador, a experiência de uma força que está dentro dele, que o possui em lugar de ser por ele possuída. A palavra pathos o testemunha; do mesmo modo que seu equivalente latino passio, que significa aquilo que acontece a um homem, aquilo de que ele é vítima passiva.” (NUNES, 2002:270).[5]

Segundo Gotlib, o título A paixão segundo G.H. se dá “porque, entre tantas paixões, esta também pode ser a paixão místico-religiosa do Cristo que pela, pela via-crúcis, passa pela dor e pelo prazer de redimir a humanidade. Isso justificaria apresentar o romance tal como um evangelho, agora segundo G.H.” (GOTLIB, 1990)[6]. Isso mostra que “a paixão não é só a experiência nauseante de ter ingerido a massa branca e insossa da barata (...): paixão é a travessia; sem se dá conta do processo que se inicia, GH atravessa a cozinha, a área de serviço, o corredor escuro; em meio a travessia, vê o interior do próprio prédio, que é o avesso de si mesma ao viver o revesso do humano.” (JORDÃO, 2006: 89).

A paixão de Jesus, narrada segundo Mateus, Marcos, Lucas e João, é o máximo do sofrimento experimentado pelo filho de Deus para a redenção da humanidade, que será recompensada com a ressurreição. A paixão segundo GH se dá numa via-sacra profana que a leva a entender ao não entender. Assim, a paixão é aceitar a nossa condição como única possível, já que ela é o que existe, e não outra. É já que vivê-la é a nossa paixão.

O título pode ser também paráfrase de o evangelho segundo Lucas, segundo Mateus, segundo o Espiritismo - de Alan Kardec.

Por que G.H.?
Clarice responde que é “porque GH era ela falando sobre ela mesma, quer dizer, não se chamava a si mesma, mas tem um pedaço que diz assim: que conseguia um nome que até na valise tinha, na mala, GH, com as iniciais. Então ficou Paixão segundo G.H.”. (entrevista – MIS – 20/10/1976). GH é uma mulher escultora, de classe alta, que mora numa cobertura de um prédio no Rio de Janeiro. “Detalhadamente não sendo, eu me provava que eu era”. (PSGH). “Perdendo o próprio nome, G.H. se identifica com todos os seres. As iniciais G.H. encobrem-lhe o verdadeiro nome. Falta-lhe a identidade, já que é a partir do nome que se tem a identidade.” (JORDÃO, 2006: 68).

“Ter uma personagem de nome desconhecido, iniciado pelas primeiras letras [...] representa a questão do nomear e do percurso que se experimenta nessa procura pelo nome ou da própria identidade. Esse percurso doloroso e prazeroso, espécie de via sacra que se chama Paixão, estende-se até o ponto máximo, na união temporária do eu e o outro.” (Gotlib, 1993:278).  Portar o nome, segundo a bíblia, é estar apto a exercer a missão que o nome carrega: abrão > abraão, pai de uma multidão; simão > Cefas (Pedro), pedra sustentáculo da igreja cristã nascente; jesus = Yeshoshú’a: Deus salva; o próprio nome original da Clarice: Haia (vida) – quando nasceu foi chamada assim. (NOLASCO, 2001: 309).[7]

GH no Divã:
“como personagem, apenas uma, ela que conta a alguém o que lhe aconteceu no dia anterior. Cria um interlocutor imaginário como recurso necessário de empreender esse relato. Ele é o que se ouve. E quem é ele? O amado que se foi? O analista? O leitor?” (Gotlib1993:279).
  • As perdas de GH. Há três perdas: o amado, o filho abortado e a empregada, mas é essa que desencadeia toda a introspecção.
A barata versus a Mulher
“A barata - ser impuro, (..) um bicho de cisterna seca, vive no deserto em que G.H. entrou”. (PSGH). Nesse caso, há um paradoxo: Janair é identificada com a barata, por isso, é o outro por suas características de negra e pobre, ante a narradora branca e rica. O quarto da empregada é o lugar onde abriga a classe mais baixa, deveria ser o cômodo mais sujo do apartamento. Entre tantas experiências que GH passa nesse quarto, a crucial é o abrir do guarda-roupa, quando a narradora se vê diante de uma barata, que, com muito custo, mata e come, deixando a mensagem para o leitor que algumas coisas na vida são indigestas, mas é preciso engoli-las, porque a vida deve prosseguir. Essa é a leitura que se faz metaforicamente do quarto da empregada, raramente visitado pela patroa, sendo o lado oculto do outro e do apartamento; soma-se a isso, a perda da empregada, a qual precisa ficar no passado.

Intertextualidade
Tânia Jordão encontrou 567 temas relacionados aos bíblicos nas obras de Clarice. Percebe-se que na obra A paixão segundo G.H. há temas relacionados com o discurso bíblico, como:
  • Tocar o imundo (levítico 11), 
  • Maná no deserto (êxodo 16), 
  • Éden (gênesis 2)
  • Etc.
A escritora usa o discurso bíblico transtextualmente, com liberdade e criatividade. Segundo Jordão, “em um momento, um metatexto evoca explicitamente seu hipotexto, quando a personagem infringe a interdição hebraica de tocar no imundo, no impuro”. (JORDÃO, 2006:12). Isso pode-se ser observado em:
  • “Eu estava num deserto, como te explicar?” (PSGH). Num deserto é tentada como Jesus.
  • “A barata pudesse dar um bote.” (PSGH). Isso faz referência à serpente no Jardim do Éden; 
  • “ a barata é pura sedução” (PSGH) – é como a serpente do paraíso fizera com Eva. O inseto seduz G.H. que provara do fruto proibido: o de dentro da mesma barata. “Quando GH prova a massa branca da barata, também passa a ter consciência de si mesmo.” (JORDÃO, 2006: 73).
  • “Por que teria eu medo de comer do bem e do mal?
  • "Se eles existem é porque é isto que existe” (PSGH);
  •  “Eu me salvaria se não tivesse comido da vida ... ouve.” (PSGH).  GH deseja dois frutos: o conhecimento do bem e do mal e a vida. Ela busca o indizível através das experiências místicas do judaísmo e do cristianismo. 
  • “O erro básico de viver era ter nojo de uma barata. Ter nojo de beijar o leproso era eu errando a primeira vida em mim, mas beijar o leproso não é bondade sequer” (PSGH). Segundo Jordão, GH veste as experiências de Francisco de Assis, o santo que beijara o leproso e acrescento que é por meio da ironia, por que o narrador afirma que “(...) mesmo que isso signifique a salvação do leproso. Mas é antes a própria salvação. O beneficio maior do santo é para ele com ele mesmo!” (PSGH).
  • “Eu sentia imunda como a Bíblia fala dos imundos. Porque foi que a Bíblia se ocupou tanto dos imundos, e fez uma lista dos animais imundos e proibidos?” (PSGH). 
  • “Ai de mim, eu não estava à altura senão de minha própria vida. (...) mas eu bem sabia que não só mulher tem medo de ver, qualquer um tem medo de ver o que é Deus. Eu também tinha medo da face de Deus.” (PSGH). Assim como Moisés, GH deseja ver a face de Deus, mas teme.
  • “Desde a pré-história eu havia começado a minha marcha pelo deserto, sem estrela para mim guiar”. (PSGH). “O pensamento da narradora vai e vem, se repete e se corrige, tal qual nos livros de Jô e Eclesiástico.” (JORDÃO, 2006).
  • “A mim me fora dada demais. Que faria eu com o que me fora dado? Que não se dê aos cães a coisa santa”. (PSGH). – Ref. MT. 7:6
O uso consciente da numerologia - cabala
O número sete é particularmente incisivo em Água Viva, já em A hora da estrela, seu sétimo romance, o narrador nos diz que “a historia – determino com falso livre arbítrio – vai ter uns sete personagens e eu sou um dosa mais importante deles, é claro!” (HE).

A presença de baratas nas obras de Clarice não passam de historietas que não passam de um parágrafo. Mas em PSGH há o contraponto por ser um pouco mais desenvolvida. Nessa obra, há até intimidade entre a narradora e o inseto, pois, GH comunga a barata, associando-a à hóstia. O cristão crê que, ao comungar, participa do corpo de cristo, é assimilado por Ele e nEle se transforma. Na experiência de GH dá-se também a transformação, só que invertidamente: há a despersonalização.

Referências
[1] GOTLIB, Nádia Batella. Clarice Lispector: a vida que se conta. São Paulo. USP, 1993. tese.
[2] JORDÃO, Tânia Dias. A Paixão segundo G.H., de Clarice Lispector. Dissertação de Mestrado. Pós-list. Fale/UFMG, 2006.
[3] Borelli, 1988.
[4] SANT'ANNA, Afonso Romano. A legião estrangeira de Clarice Lispector. Prefácio do livro. Ed. Ática, 1977.
[5] NUNES, Benedito. In.: A paixão de Clarice in.: Cardoso, Sérgio (et al). Os sentidos da paixão. São Paulo. Companhias das letras.
[6] GOTLIB, Nádia Batella. No território da paixão. 1990.
[7] In.: JORDÃO, 2006.

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