O outro lado da pobreza

Um mendigo caminha tranquilamente pela rua deserta de Belo Horizonte. É manhã de domingo. Ele vai a um mercado tradicional da capital mineira. Quer comprar mortadela para comer com um pão velho que encontrara em um saco de lixo na porta de um hotel luxuoso localizado na Avenida Afonso Pena. Esse mendigo é um morador tradicional da região central da cidade. Ainda está na flor da idade, mas devido os vários anos vividos a perambular pelas ruas de Belo Horizonte o tornara um velho conhecido dos comerciantes dessa região, inclusive da polícia.

O Rapaz chega a um supermercado localizado no mercado central. Ali encontra o Senhor Ferdinando Torricelli, um conhecido comerciante do mercado, e pedi-lhe duzentos gramas de mortadela. Diz ao proprietário do supermercado que está com muita fome e que acha que tal quantidade de alimentação será suficiente para sobreviver mais um dia nas ruas da Capital mineira.

Ferdinando fica surpreso com do discurso do mendigo e lhe pergunta:
- Como assim, Renato?
Ah, Eu me esqueci de lhe dizer que o nome do rapaz é Renato, mas não faz mal; ele é membro de um grupo de pessoas que é ofuscado aos olhos da maioria das pessoas que passam pela região central de Belo Horizonte.
- É que tá difícil de encontrar alimentação nas ruas. As pessoa mistura vários produtos químicos no resto de comida para impedir que a gente pegue a sobra. Coloca detergente, papel higiênico e até soda cástica para impedir nóis de pegar a comida.
- É para seu próprio bem Renato. Já imaginou se você comesse alguma coisa estragada e começasse a passa mal. É por isso que elas fazem isso. Justificou o comerciante a Renato.

Renato paga a mortadela com os níqueis que ganhara de uma bondosa senhora na noite anterior. Ele havia “tomado conta” do carro da Madame Patrícia durante um espetáculo que ocorrera no Palácio das Artes. O moço come o lanche em poucos segundos. A ele, um grama de mortadela é suficiente para lhe a pança. Após matar a fome, despede-se do Torricelli e sai a cantar uma música esquisita, que parecia Funk. Atravessa a Avenida Amazonas e se dirige para a rodoviária, em busca de mais algumas moedas, talvez para garantir o jantar.
Renato tem dezessete anos e ainda é considerado menor. Não tem pai, não tem amigos e não tem irmão. Dorme pelas calçadas, coberto com papelão. Seu travesseiro é o chão frio e outrora úmido, devido às chuvas do verão. Não sabe escrever e tampouco conhece o significado de um asterisco em um vocábulo.

Todas as manhãs, ele se levanta bem cedinho; amarra o cadarço do velho sapato e sai a perambular. Vai a buscar do nada, porque a vida de um mendigo, que vive a perambular pelas ruas, não tem objetivos concretos. O acaso permeia o dia a dia. Ele tem sonhos: ter uma casa, uma companheira, filhos e por que não, estudar. A escola é pública, porém, nem todos têm direito a permanência nela. Isso é o que sempre mastiga Renato em seus pensamentos. Ah, ele pensa e, como pensa!

Passado um tempo, Renato foi informado por um gari que o prefeito da cidade, João Verrudio, havia iniciado um trabalho beneficente cujo objetivo era remover os mendigos do centro da capital. Esse prefeito iria conceder moradias às pessoas como Renato. Tal benefício, fora julgado pelo rapaz como um privilégio a conquistar, pois sabia que as moedas que ganhava nas ruas eram insuficientes para comprar um barracão para esconder da chuva e do frio. Sentiu-se honrado e disse ao gari que o senhor Verrudio não era tal mau como costumar ouvir nas ruas pela boca do povo e acrescentou:
- Dizem que ele viaja muito, que ele ficou ainda mais rico com dinheiro da gente, que ele encarece as obras, para roubar o dinheiro da gente, mas o que importa é que se ele ajuda os pobres, já alguma coisa boa.
- A verdade é que ele tá querendo é se promover a custa do dinheiro nosso. Vai ter eleição no final do ano que vem e ele já tá garantindo os votos para ganhar a eleição - Comentou o gari.
- Cê parece que também gosta de ver os pobres sofrer. O que sei é que eu preciso sair dessa vida e não importa como. Respondeu-lhe o mendigo.

Renato pensou que tendo uma casa e gente para lhe cuidar não iria passar mal. Parecia acreditar que isso acabaria com os seus problemas. Passados alguns meses, Renato recebeu do prefeito uma casa no bairro Itapegi, que fica cerca de quinze minutos do centro da cidade. A casa é geminada. Ela é uma parte do sonho do rapaz.

Na primeira semana que morou na casa, Renato sentiu-se muito solitário e resolveu convidar a Márcia, uma colega de rua, que compartilhava com ele os bons e os maus momentos da vida. É isso que ele dizia sobre a vida de morador de rua. É verdade que ele gosta de ressaltar os maus momentos, porque os bons momentos foram raros ou, quizas, não existiram. Márcia não titubeou: aceitou o convite em ínfimo tempo para pensar.

No primeiro sábado do mês de agosto, houve um almoço na casa do Renato. Não havia muitos convidados, apenas ele, a Márcia e um vizinho. Serviu-se, como parte da refeição, arroz quebradinho, feijão tipo três e lambari, sem espinha. Esse era uma carne especial. A Senhora Márcia ficou parte da manha do sábado transformando o peixe simples, em file de peixe. O vizinho e o Renato se surpreenderam com a habilidade daquela mulher. Ela transformou a carne do peixe em uma suculenta refeita digna de ser servida em banquete para pessoas grã-finas. Ao ouvir o elogio do marido, a Senhora Márcia ficou muito lisonjeada e disse:
- Muito obrigada. Eu acho que tenho dotes culinários. Creio que eles começaram a aflorar hoje. Eu nasci em grupo familiar de classe média. Tive boa alimentação e educação, mas com o advento da morte de meus pais em acidente automobilístico, resolvi deixar tudo e criar um mundo só meu. Foi uma forma de me refugiar da tragédia familiar. Desculpem-me pelo desabafo. A verdade é que não havia revelado isso nem para o Renato. Sempre procurei esconder o meu lado sombrio. Um dia conheci esse moço: homem puro de alma, carinhoso e gentil e ao encontrá-lo deitado debaixo de uma marquise, coberto por um pequeno papelão; vi nos seus olhos algo muito além de um rapaz maltrapilho e imaginei que com ele poderia recomeça minha vida. Aquele lugar é o ponto geodésico da minha vida...
- Assim, meu bem, eu fico sem graça. Interrompeu Renato. Eu não sou tudo isso que ocê fala e não completo nem eu mesmo. Obrigado por suas palavra.
- Tudo que eu disse é a pura verdade, Renato. Completou a Senhora Márcia.

Após a partida do vizinho, Renato retomou o assunto sobre o passado de Márcia: queria conhecer os detalhes da tragédia e, principalmente, a posição social que os pais da Senhora esposa ocupavam. Descobriu que a mãe dela era professora em uma escola particular e que o pai era dono de uma loja de departamentos. Porém Renato não conseguia entender o porquê da Senhora Márcia passar por imensa tragédia psicológica e espiritual. Tinha uma certeza: se a Senhora Márcia teve uma família de posses, era certo de que havia algum resquício dessa riqueza a recuperar.

No dia trinta de novembro fará três cinco anos que o Senhor Renato abandonou a vida de morador de rua. Ele passou por muitas transformações: fez supletivo, em uma escola particular, comprou um carro e cursa uma faculdade. Tudo parece haver mudado. Só não mudou a simplicidade do Senhor Renato, pois carrega na memória as marcas dos longínquos anos vividos nas ruas da capital mineira. Não esquece os manos que dividiam com eles o papelão que servia de cobertor. Não irá esquecer as pessoas gentis que permitiam a ele sobreviver mais um dia nesse mundo comando pelo capitalismo, através das moedas doadas.

Para comemorar cinco anos de reencontro com a verdadeira vida digna dos humanos, o Senhor Renato agendou uma festa. Nela haverá muitas pessoas importantes, incluso dois membros da policia militar, que por três vezes o prendera cometendo pequenos delitos, conforme o comentário de um sargento ao próprio Senhor Renato. A verdade é que o Senhor Renato não acredita nessa balela discursiva do sargento. Rememora os momentos das detenções e percebe que sofreu muito nas mãos desses homens: era tratado como um animal indigno de respeito. Quando olhava para os rostos dos policiais, preferira ser um cãozinho vira-lata, pois assim contaria com admiração da associação dos protetores dos animais. Mas fazer o que? Nasceu humano e assim deveria ser.

Muitos convidados não foram à festa, pois pensaram que o Senhor Renato queria aparecer, mostrar a eles que enriquecera. A verdade é que esse moço não enriquecera, fez uma travessia na vida, levando consigo as marcas da violência social e o bom relacionamento com as poucas pessoas que lhe queriam bem. Na festa, alguns colegas do senhor Renato comentavam, aos bochichos, que os policiais estavam presentes naquele lugar para observar o desenrolar da festividade, pois a polícia não acreditar na recuperação dos delinquentes: uma vez marginal, para sempre se carrega o estigma de marginal. A verdade é que aqueles policiais se tornaram íntimos do Senhor Renato, devidos às várias vezes que o transportara gratuitamente à Seccional Centro, onde o moço passava várias horas explicando ao delegado o motivo dos furtos aos supermercados. O certo é que a fome roía o estômago do rapaz e não havia alternativa que não desembocasse aos furtos de alimentos nas lojas. O dito popular diz que é a ocasião que faz o ladrão, mas no seu caso era a fome que o levava aos delitos. Nessa perspectiva discursiva, o moço convencia ao doutor de que não havia escolha para os moradores de rua: ou furta alimento nas lojas ou morre-se de fome. a verdade é que a morte habitava os dejetos colocados nos lixos, pois os ricos impediam a alimentação dos mendigos ao colocarem produtos tóxicos misturados ao resto de alimento.
A festa transcorreu normalmente. Não houve nenhum incidente que levasse os policiais ao trabalho. Renato, feliz com a presença de alguns colegas, comentou:
- Fico honrado com presença de vocês. Esse é um dia muito importante para mim. Sinto-me o valor que tenho perante a sociedade, valor esse que me acompanhava desde o tempo em que eu vivera nas ruas. Quero lhes dizer que não é o dinheiro que nos torna importante, mas o que realmente somos. O dinheiro apenas nos molda segundo os padrões sociais impostos. O dinheiro nos coloca a máscara social e impede que desçamos do pedestal da arrogância e vejamos os necessitados. Parece que se relacionarmos com os pobres, nos tornamos enfermos pela miséria que os cercam. Mas isso é uma ideia capitalista e antissocial que nos afasta da realidade do mundo. Não podemos ignorar aqueles que precisam de uma mão amiga para vencer na vida. A travessia social não é uma mágica. É um processo que necessita de auxílio. Se o governo auxiliar os menos favorecidos, será possível retirar das ruas todos os sem lares. Se os governos se preocuparam com os necessitados, será possível acabar com boa parte da miséria que ronda as pessoas carentes desse mundo.

Houve silêncio na festa; esperava-se que o Senhor Renato continuasse o seu discurso, mas não houve continuidade, apenas aplausos. Após o discurso, ele levou um convidado, que conhecera na faculdade, para conhecer a casa que fica ao fundo. Ao chegarem ao local, o Senhor Renato chamou ao morador:
- Genival, trouxe aqui o homem que lhe falhei. Ele vai conceder a você um trabalho na câmara de vereadores, pois precisam de porteiro que conheça a informática.
- Pois então Renato; eu sou a pessoa certa. Acabei de fazer um curso de computação e me tornei um especialista em CD-ROM.
- Não é cd-rum, Genival; é CD-ROM, como a pronúncia da palavra Roma. Corrigiu-lhe o Senhor Renato.
- Onde fica o seu gabinete doutor? Perguntou-lhe o Genival?
- É a primeira porta a direita após o senhor entrar pelo rau da câmara. Disse o colega do Senhor Renato.
- Desculpa-me Senhor, mas não é Rau, a pronúncia correta é Rol, do inglês Hall. Falou ao colega o Senhor Renato.

A verdade é que o Senhor Renato não é uma pessoa pedante, mas conhecedor da discriminação pela qual passam as pessoas que não tiveram acesso aos estudos; é natural que ele coloque seu conhecimento a disposição da sociedade. O senhor Renato se sente constrangido ao ouvir uma autoridade pública fazer o uso incorreto da norma culta da língua portuguesa do Brasil. Ele aceita a linguagem coloquial de Genival, mas crê ser insuportável vê-la sendo praticada por uma autoridade pública. O moço pensa que é obrigação dos agentes públicos, que normatizam a língua, usá-la corretamente.

O vereador observou que faltava um basculante na casa de Genival; ao ver jogado ao solo um basculante todo enferrujado e que já esse era usado, disse-lhe ao Genival:
- Amanhã vou estar mandando um novinho para você.
Novamente Senhor Renato o interrompeu e disse-lhe:
- O certo é dizer “vou mandar ou mandarei um novinho para você”; portanto, é desnecessário usar dois verbos e um gerúndio em uma mesma frase; sem contar que o gerundismo é considerado, pelos defensores da norma culta, um erro grave.

A festa foi um sucesso. Tudo terminou em paz. Mas uma coisa se deve destacar, é que todos os convidados, impressionados, voltarem para casa com a ascensão social e erudita do ex-mendigo. Isso é destacável porque eles acompanharam a trajetória social do rapaz. Após muitos comentários sobre o Senhor Renato, concluíram: é possível que as arestas indesejáveis da vida sejam aparadas; é possível contradizer as expectativas, os dados percentuais que premonizam o sucesso e o fracasso social humano e construir uma nova história, ainda que exclusiva de cada indivíduo. A opção pela travessia social é concedida a todos, mas são poucas as pessoas que têm a coragem de enfrentar as trevas e as pedras que há no caminho.

Por Geraldo Genetto Pereira
Professor, escritor, blogueiro, youtuber.
Formação: Licenciatura e Mestre em Letras pela UFMG.

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